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Um deslize da língua

por C. S. Lewis[1]

Quando um leigo tem de pregar um sermão, acredito que há mais probabilidade de ele ser útil, ou mesmo interessante, se começar exatamente de onde ele próprio está, não tendo tanto a presunção de instruir mas, sim, de comparar observações.

Não faz muito tempo, quando eu estava usando a coleta[2] do domingo seguinte ao da Trindade[3] em minhas orações particulares, descobri que eu tinha cometido um deslize linguístico. Eu queria orar “que eu possa passar pelas coisas temporais sem acabar perdendo as coisas eternas”. Descobri que tinha orado “que eu possa passar pelas coisas eternas sem acabar perdendo as coisas temporais”. Naturalmente não acho que um deslize da língua seja pecado. Não tenho certeza de que nem sequer eu seja suficientemente freudiano para acreditar que todos esses deslizes, sem exceção, sejam profundamente importantes. Acho porém, que, alguns deles são significativos e considerei que esse era significativo. Achei que o que eu tinha dito de maneira inadvertida expressava praticamente algo que eu desejava de fato.

Praticamente, não: claro, precisamente. Eu nunca fui tão tolo a ponto de achar que alguém pudesse literalmente “passar pelo” eterno. Eu queria era passar sem prejuízos de minhas coisas temporais por aquelas horas ou momentos em que eu me preocupo com o eterno, em que me exponho a ele.

Refiro-me a esse tipo de coisa. Faço minhas orações, leio um livro de devoção, preparo-me para a Ceia do Senhor e a recebo. Entretanto, enquanto faço isso, existe, por assim dizer, uma voz dentro de mim que insiste para eu ter cuidado. Ela me diz para ser cauteloso, manter a cabeça, não ir longe demais, não ser imprevidente a ponto de chegar a um lugar de onde não há retorno. Chego à presença de Deus com grande temor de que me aconteça algo nessa presença que possa ser intoleravelmente inconveniente quanto tiver de voltar para minha vida “comum”. Não quero perder o controle em qualquer resolução de que tenha de me lastimar depois. Pois eu sei que vou sentir-me bem diferente depois do café da manhã; não quero que nada me aconteça no altar que gere uma conta alta demais para eu ter de pagar. Seria muito desagradável, por exemplo, levar a obrigação da caridade tão a sério (enquanto estou no altar) que, depois do café, eu tivesse de rasgar a desconcertante resposta que havia escrito a um irreverente correspondente ontem e que tinha a intenção de colocar no correio hoje. Seria muito cansativo eu me comprometer com um programa de moderação que cortasse meu cigarro pós café da manhã (ou, na melhor hipótese, transformá-lo cruelmente na alternativa de fumar um cigarro mais tarde, na manhã). Até o arrependimento dos atos passados terão de ser pagos. Arrependendo-se, o indivíduo os reconhece como pecados – portanto, não devem ser repetidos. É melhor deixar esse problema sem solução.

O princípio original de todas essas precauções é o mesmo: proteger as coisas temporais. E encontro algumas evidências de que essa tentação não é exclusivamente minha. Um bom escritor (cujo nome esqueci) pergunta em algum lugar: “Será que nós nunca nos levantamos de nossos joelhos com pressa, por causa do medo de que a vontade de Deus ficasse tão inconfundível, se orássemos por mais tempo?”. A história a seguir foi contada como verídica. Uma irlandesa que tinha acabado de se confessar encontrou nos degraus da capela uma mulher que era sua maior inimiga na vila em que moravam. Essa mulher deu vazão a uma torrente de palavras insultuosas. “Não é uma vergonha para você”, replicou Biddy, “ficar falando desse jeito, sua covarde, quando eu estou num estado de Graça em que não posso responder-lhe? Mas espere. Eu não vou ficar em estado de Graça por muito tempo”. Há um excelente exemplo tragicômico em Last Chronicle [Última Crônica], de Trollope. O Arquidiácono estava zangado com seu filho mais velho. Imediatamente fez uma série de arranjos jurídicos em prejuízo do filho. Esses arranjos poderiam muito bem ter sido feitos alguns dias depois, mas Trollope explica por que o Arquidiácono não esperaria. Até o dia seguinte, ele tinha de passar por suas orações vespertinas e sabia que poderia não ser capaz de levar seus planos hostis em segurança até a frase: “perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores”. Por isso, ele se adiantou; decidiu presentear Deus com um fait accompli[4]. Esse é um caso extremo das precauções de que estou falando. O homem não se arriscaria a se aproximar do eterno sem antes ter deixado protegidas as coisas temporais.

Esta é a minha tentação recorrente e infindável: entrar nesse Mar (acho que foi São João da Cruz que chamou Deus de mar) e nele não mergulhar, não nadar nem flutuar, mas somente chapinhar e borrifar, tomando cuidado para não boiar e segurando-me na corda salva-vidas que me liga a minhas coisas temporais.

É diferente das tentações que nos encontram no início da vida cristã. Nessa ocasião, lutamos (eu pelo menos lutei) para não reconhecer os argumentos do eterno. E, quando lutamos e fomos derrotados e rendidos, achamos que tudo iria bem de vento em popa. Essa tentação vem depois. Ela se dirige para aqueles que já reconheceram os argumentos no princípio e até se estão empenhando para cumpri-los. Somos na verdade muito parecidos com o contribuinte honesto mas relutante. Em princípio, aprovamos o imposto sobre a renda. Fazemos nossa declaração fielmente, mas tememos um aumento de imposto. Temos muito cuidado para não pagar nada mais que o necessário. E esperamos – esperamos ardentemente – que, depois de ter pagado os impostos, ainda tenha restado o suficiente para vivermos.

Observem que essas precauções que o tentador sussurra em nosso ouvido são plausíveis. Na verdade, não acho que ele sempre nos tente enganar com uma mentira direta (depois dos primeiros anos). A plausibilidade é esta. É de fato possível deixar-se arrebatar pela emoção religiosa – entusiasmo, como diziam nossos antepassados – e sermos levados a tomar resoluções e atitudes que não tomaríamos, não de forma pecaminosa, mas racional, não quando estamos mais mundanos, mas quando estamos mais prudentes. Podemo-nos tornar escrupulosos ou fanáticos; podemos, por aquilo que parece zelo, mas é na verdade presunção, abraçar tarefas que nunca foram planejadas para nós. Essa é a verdade da tentação. A mentira consiste na proposta de que nossa melhor proteção é uma consideração prudente pela segurança de nosso bolso, de nossas costumeiras indulgências e ambições. Isso, porém, é completamente falso. Nossa proteção verdadeira deve ser procurada em outro lugar: no uso comum cristão, na teologia moral, no pensamento racional firme, no conselho de bons amigos e bons livros, e (se necessário) num orientador espiritual capacitado. Ter aulas de natação é melhor do que segurar-se na corda salva-vidas na praia.

Porque essa corda salva-vidas é, na verdade, uma corda de morte. Não é como pagar os impostos e viver com o restante. Pois não é tanto o nosso tempo e a nossa atenção que Deus exige; não é nem sequer todo o nosso tempo e toda a nossa atenção. Ele quer a nós mesmos. As palavras de João Batista, pois, são verdadeiras para cada um de nós: “É necessário que ele cresça e que eu diminua”. Ele será infinitamente misericordioso para com nossos constantes erros. Não conheço nenhuma promessa de que Ele aceitará alguma concessão deliberada. Pois, em último recurso, Ele não tem nada para nos dar a não ser a Ele mesmo. E só pode fazer isso desde que nossa autoafirmação desapareça e deixe lugar para Ele em nossa alma. Decidamos fazer isso; não restará nada “de nós mesmos” para viver depois disso, não haverá mais vida “comum”. Não quero dizer que cada um de nós necessariamente será chamado para ser mártir nem mesmo asceta. É assim que pode ser. Para alguns – ninguém sabe quais – a vida cristã terá muito lazer, muitas ocupações de que gostamos naturalmente. Elas, no entanto, serão recebidas das mãos de Deus. Num cristão perfeito, elas fariam parte de sua “religião”, de seu “culto”, tanto quanto suas obrigações mais difíceis, e seus banquetes seriam tão cristãos quanto seus jejuns. O que não se pode reconhecer – o que deve existir somente como um inimigo não derrotado, mas a que se resiste diariamente – é a ideia de algo que seja de “nossa propriedade”, alguma área em que devemos estar “fora da escola”, em que Deus não tem direito.

Ele exige tudo, porque Ele é amor e deve abençoar. Ele não nos pode abençoar se não nos tiver para Ele. Quando tentamos reservar dentro de nós uma área que é nossa, tentamos guardar uma área normal. Portanto, em amor, Ele exige tudo. Não existe negociação com Ele.

É esse, acredito, o sentido de todas aquelas falas que mais me alarmam. Thomas More disse: “Se você fizer contratos com Deus de quanto vai servi-lo, descobrirá que você mesmo assinou por ambas as partes”. William Law[5], com sua voz fria e terrível, disse: “Muitos serão rejeitados no último dia, não porque gastaram tempo e sofreram pela salvação, mas porque não gastaram tempo nem sofreram o suficiente”. Mais tarde, em seu período behmenita, mais rico: “Se vocês não escolheram o Reino de Deus, no final, não fará diferença o que vocês preferiram no lugar dele”. São palavras duras. Será que não fará mesmo diferença se a escolha foi por mulheres ou patriotismo, cocaína ou arte, uísque ou um cargo no Gabinete, dinheiro ou ciência? Bem, seguramente nenhuma diferença que importe. Teremos perdido a finalidade para a qual fomos formados e teremos rejeitado a única coisa que satisfaz. Morrer no deserto faz diferença para um homem cuja escolha o levou por uma estrada que o fez perder a oportunidade de encontrar a única fonte de água?

É curioso observar que, sobre esse assunto, Céu e Inferno falem com uma única voz. O tentador me diz: “Cuidado! Pense em quanto essa boa determinação, a aceitação dessa Graça, vai custar.” Entretanto, Nosso Senhor igualmente nos diz para avaliar o custo dessa escolha. Mesmo nos negócios humanos se agrega grande importância à anuência daqueles cujo testemunho dificilmente concorda sempre. Aqui, isso se dá com maior destaque. Parece que entre eles está bem claro que chapinhar quase não tem consequência. O que importa, o que o Ceú deseja e o Inferno teme, é exatamente aquele passo além, estar fora de nosso controle.

Contudo, não estou em desespero. Nesse ponto, torno-me aquilo que alguns chamariam de muito evangelical; de qualquer forma, muito não-pelagiano. Não acho que qualquer empenho de minha parte poderá findar de uma vez por todas essa ânsia por responsabilidades limitadas, essa reserva fatal. Somente Deus pode. Tenho fé e esperança de que Ele poderá. Claro, não quero dizer que por isso eu posso, como dizem, “relaxar”. O que Deus faz por nós Ele faz em nós. O processo de fazer me parece (e não falsamente) que são os exercícios repetidos diariamente, ou de hora em hora, de minha própria vontade de renunciar essa atitude. Principalmente toda manhã, pois ele cresce por sobre mim como um escudo novo toda noite. As falhas serão perdoadas. A aquiescência é que é fatal, a presença permitida, regular, de uma área em nós que ainda reclame nossa propriedade. Talvez nunca, deste lado da morte, expulsemos o invasor de nosso território, mas devemos ficar na Resistência, não no governo de Vichy[6]. E isso, até onde ainda posso ver, se deve iniciar de novo todo dia. Nossa oração matinal deve ser a da Imitação: Da hodie perfecte incipere – conceda-me que tenha um começo sem falhas hoje, pois ainda não fiz nada.


[1] Extraído do livro “O peso de gloria”, tradução Lenita Ananias do Nascimento, editora Vida, 1ª edição, 2008, pg. 173-180.
[2] Tanto na Igreja Católica Romana quanto na Igreja Anglicana, a coleta é uma oração breve lida em determinados dias do calendário litúrgico. Fonte: definição do Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English. [N. do T.]
[3] “Ó Deus, protetor de todos que confiam em ti, sem o qual nada tem poder, nada é santo: aumenta e multiplica sobre nós a tua misericórdia; que, sendo tu nosso soberano e guia, possamos passar pelas coisas temporais sem perder por fim as coisas eternas: concede-nos isso, Ó Pai celestial, em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.” – ed.
[4] Fait accompli: expressão do francês que significa “um feito acabado”, irreversível. [N. do T.]
[5] William Law (1686-1761) é autor de obras sobre a fé prática que estão entre os clássicos da teologia inglesa. [N. do T.]
[6] Cidade francesa que foi sede do governo colaboracionista durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. [N. do T.]

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